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Horror em RPG: O quê? Como? Ond... Aaaaaaah!



Horror não é um gênero bom para mim. Eu sou terrivelmente impressionável, e ler, assistir ou jogar uma obra de terror que me dê a experiência completa das sensações relacionadas ao gênero significa insônia, pesadelos e ficar correndo para se esconder dentro do quarto depois de apagar a luz da sala por alguns dias. Por essas e outras circunstâncias, o gênero de horror não é bom. Ele é ótimo.


Arte, Entretenimento e Impacto Criar uma obra para consumo de um público, tanto artística como de entretenimento, implica criar algo com o objetivo de suscitar certas emoções específicas. Como diria Edgar Allan Poe, em seu artigo The Philosophy of Composition:

"I prefer commencing with the consideration of an effect. Keeping originality always in view — for he is false to himself who ventures to dispense with so obvious and so easily attainable a source of interest — I say to myself, in the first place, 'Of the innumerable effects, or impressions, of which the heart, the intellect, or (more generally) the soul is susceptible, what one shall I, on the present occasion, select?' "Eu prefiro começar com a consideração de um efeito. Mantendo a originalidade sempre em mente - pois é falso a si mesmo aquele se arrisca a dispensar uma fonte tão óbvia e fácil de interesse - eu digo para mim mesmo, em primeiro lugar, 'De todos os inúmeros efeitos, ou impressões, às quais são suscetíveis o coração, o intelecto ou (de forma mais geral) a alma, qual eu deveria, na presente ocasião, selecionar?'”

Dentre os gêneros possíveis, horror talvez seja um dos mais bem-definidos neste sentido, pois mais do que ser guiado por uma fórmula, ele é firmemente orientado a causar determinados efeito na audiência. Nas palavras do Angry DM, que tem um puta texto sobre o assunto:

Horror is about instilling visceral emotions. Emotions that you feel in your gut. And not happy ones. The bad ones. The ones that make you feel queasy and anxious and uncomfortable and, above all, afraid. Horror é sobre instigar emoções visceras. Emoções que você sente no seu âmago. E não as emoções felizes. As ruins. As que fazem você sentir náusea e inquietação e desconforto, e acima e tudo, medo.

A maior dicotomia de sentimentos que nos faz acompanhar uma história é o par Esperança/Medo. Nós esperamos que coisas boas aconteçam com os personagens, e temos medo que coisas ruins aconteçam.


E specificando a idéia de medo, que seria o ponto alto de uma obra de Horror, eu diria que é homogeneamente um gênero sobre desconforto. E do quanto este desconforto pode ser intenstificado, torcido e explorado em favor da experiência, da vivência da história.

Mas nem todo desconforto é igual, como nem todo filme ou livro de horror aborda os mesmos temas ou foca nas mesmas sensações. Pessoalmente, eu consigo pensar em 5 efeitos, ou elementos, com os quais você pode querer trabalhar na sua campanha: -Susto - Susto é o medo abrupto, e nós o reconhecemos imediatamente: o coração acelera, os olhos arregalam, o sangue corre para as extremidades, e muitas vezes o corpo reage instintivamente, e nós pulamos, nos afastamos, derrubamos coisas. Muitos filmes de terror, principalmente os mais contemporâneos, trabalham com o elemento de susto. Ele funciona melhor quando existe uma certa tensão anterio - silêncio, sussuros ou uma trilha sonora inquietante. É difícil assustar quem não está prestando muita atenção na história - você pode surpreendê-lo, mas dificilmente assustá-lo. Simplesmente não exite tensão o bastante. Susto também é, necessariamente, um elemento narrativo concreto: ou seja, você não consegue extrair uma reação de susto apenas usando de narrativa. Você precisa de um elemento IRL, em off, que assuste os jogadores. Isso pode ser feito de várias maneiras, desde uma mudança muito abrupta de voz - indo de um sussuro no silêncio para um grito e/ou uma batida na mesa- até ter algumas outras surpresas preparadas, como alguém fazer uma porta ranger na hora certa, ou as velas(ou luzes) se apagarem. Importante saber: imeditamente após terem um susto, as pessoas vão instintivamente querer fazer piada, dar risada, fazer leve da situação. Leve isso em consideração, e prepare a sessão de acordo. -Asco -

Asco, repulsa ou nojo, é o que sentimos quando queremos nos afastar daquilo, queremos que o objeto deste sentimento simplesmente suma. Filmes como Irreversível, Requiem para o Sonho, Ensaio Sobre a Cegueira têm cenas e temas que exploram esse sentimento - e que são tão marcantes para quem assistiu esses filmes que nenhuma outra referência é necessária para saber a quais cenas me refiro. É uma solução relativamente fácil para RPG: simplesmente aproveite a oportunidade para descrições bastante gráficas do que eles vêem, cheiram, sentem. Uma técnica ideal é uma descrição inicial rica e precisa nos elementos que visam provocar nojo, seguida de outras descrições rápidas (e igualmente desconfortáveis em termos de sentidos) conforme a cena se desenvolve. A cada momento que nós não nos afastamos daquilo que nos inspira nojo, nossos sistema grita para o fazermos. Estudar o estilo de escrita de Stephen King e Joe Hill é uma boa dicas, porque eles são autores que frequentemente escolhem esse tipo de impacto para cenas de horror. Outra idéia é usar efeitos práticos: sangue falso, cheiros desagradáveis, objetos de formas perturadoras. Uma boa fonte de pesquisa e de props são vídeos de pranks de Halloween e lojas de festas/fantasias. Importante: teste os efeitos que você quiser usar antes da sessão, para ter certeza que eles funcionarão como você espera. -Desespero-


Meu filme de horror favorito é A Bruxa. Eu me lembro vividamente da cena em que eu tive a realização, no meu âmago, que nada iria ficar bem e qualquer final que viesse não seria feliz. Este sentimento de algo afundando em águas escuras é uma versão de desespero: o entendimento de que não há vitória possível, e que cada segundo te arrasta para mais perto de tudo que você teme.

É um tema extremamente interessante para se explorar em uma campanha de RPG, e ele requer dois focos principais: a inexorável marcha da história em direção a um abismo, e alguma motivação que force os personagens a não desistirem. Quando eu digo “inexorável marcha da história em direção ao abismo”, eu quero dizer: a cada cena, os personagens têm que perder algo. As ações deles podem controlar o quanto, como ou o quê, mas a todo momento, algo está em risco, e na maioria dos casos, esse risco se concretiza. De forma que uma situação na qual eles consigam sair do mesma forma que entraram pareça uma vitória épica, e extremamente rara. Zumbis, obviamente, é um tema recorrente: principalmente se você explorar a idéia que todos já foram infectados com o “vírus”, e vão, inevitavelmente, se transformar quando morrerem - e tudo se torna uma questão de quando cada um vai se transformar. O Chamado de Cthulhu, possivelmente o RPG de Horror mais popular do mundo, com sua inescapável queda de sanidade, é construído em torno deste tema. -Ansiedade/Suspense- Alfred Hitchcock tem uma famosa citação sobre a diferença entre choque e suspense com a sua “Teoria da Bomba”

"Existe uma distinta diferença entre “suspense” e “surpresa”, e ainda sim muitos filmes confundem as duas. Eu explicarei o que quero dizer. Nós estamos tendo uma conversa inocente. Suponhamos que haja uma bomba sob a mesa, entre nós. Nada acontece, e subitamente: “BOOM!”. Tem uma explosão. O público está surpreso, mas antes de se surpreender, ele assistiu uma cena perfeitamente ordinária, sem qualquer consequência especial. Agora, vamos pensar em uma situação de suspense. A bomba está ob a mesa, e o público sabe, provavelmente porque viram o anarquista colocá-la lá. O público tem ciência que a bomba vai explodir à uma hora, e tem um relógio no cenário. O público vê que falam quinze minutos para uma. Nestas condições, a mesma conversa inconsequente se torna fascinante, porque o público está participando da cena. A audiência anseia por avisar os personagens na tela: “Vocês não deveria estar falando superficialidades! Tem uma bomba embaixo de vocês que vai explodir!” No primeiro caso, nós demos ao público quinze segundo de supresa no momento da explosão. No segundo, providenciamos quinze minutos de suspense. A conclusão é que sempre que possível, o público deve ser informado. Exceto quando a surpresa é um twist, ou seja, quando um final inesperado é, em si mesmo, o ponto alto da história.”

O RPG tem a distinta peculiaridade de ter público e atores sendo a mesma pessoa. Desta forma o elemento de suspense pode atuar em ambas as instâncias: um som de sinos que surge, subitamente, sempre antes de um personagem ser transformado em zumbi - mas não imediatamente antes. O fato que o ritual que vai engolir a cidade para o abismo vai ser completado em uma hora, e eles têm que escolher entre enfrentar os cultistas ou evacuar as pessoas antes do tempo acabar. Saber que cada vez que eles usarem determinadas palavras (que eles não sabem todas quais são), o NPC que eles precisam proteger muda aleatóriamente de personalidade - e algumas são demoníaca e homicidas. Uma série de enigmas que precisam ser respondidos em determinado tempo ou o prédio vai desmoronar. Qualquer elemento narrativo que seja simultaneamente conhecido, horrível e esteja além (ou praticamente além) do controle dos personagens, mas com o qual eles tenham que lidar (por isso tempo é um recurso tão bom) pode funcionar como causa de tensão e suspense. -Compaixão e Empatia-

“Em todas as línguas derivadas do latim, a palavra compaixão forma-se com o prefixo ‘’com’’ e a raiz ‘’passio’’ que, na sua origem, significa sofrimento. Em outras línguas, como, por exemplo, em checo, em polonês, em alemão, em sueco, a palavra traduz-se por um substantivo formado por um prefixo equivalente seguido da palavra ‘’sentimento’’ (em checo: sou-cir; em polaco: wspol-czucie; em alemão: Mit-gefühl; em sueco: med-känsla).
Nas línguas derivadas do latim, a palavra compaixão significa que ninguém pode ficar indiferente ao sofrimento de outrem; ou, de outra maneira: sente-se sempre simpatia por quem sofre. Outra palavra que tem mais ou menos o mesmo sentido, e que é piedade (em inglês pitv, em italiano pierà, etc.), chega até a sugerir uma espécie de indulgência para com o ser que sofre. Ter piedade de uma mulher é sermos mais favorecidos do que ela, é inclinarmo-nos, baixarmo-nos até ela.
É por isso é que a palavra compaixão inspira geralmente uma certa desconfiança; designa um sentimento considerado como de segunda ordem e que não tem grande coisa a ver com o amor. Amar alguém por compaixão é de fato não amar essa pessoa.
Nas línguas em que a palavra compaixão não se forma com a raiz ‘’passio = sofrimento’’ mas com o substantivo ‘’sentimento’’, a palavra é empregue mais ou menos no mesmo sentido, mas dificilmente se pode dizer que designa um sentimento mau ou medíocre. A força secreta da sua etimologia banha a palavra de uma outra luz e dá-lhe um sentido mais lato: ter compaixão (co-sentimento) é poder viver com o outro não só a sua infelicidade, mas sentir também todos os seus outros sentimentos: alegria, angústia, felicidade, dor. Esta compaixão (no sentido de soucit, wspolrzurie, Mitgefühl, medkänsla) designa, portanto, a mais alta capacidade de imaginação afetiva, ou seja, a arte da telepatia das emoções. Na hierarquia dos sentimentos, é o sentimento supremo.” -Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser

Os jogadores não estão em risco durante uma sessão de RPG - os personagens sim. Tanto os PCs quanto NPCs têm que lidar com o universo cruel do jogo, e na maior parte dos casos, os sentimentos que possam ser instigados são sentimentos de compaixão - pelos personagens, pela vulnerabilidade e fragilidade deles. Isso pode ser explorado, inclusive, como foco de narrativa. O medo por um NPC querido pode ser um motivador importante - que vai fazer com que o Personagem continue seguindo adiante, mesmo depois de perder toda a esperança. E qual a vantagem de tudo isso? Para que nós criamos esses sentimentos? Catarse Lembra do adágio que todas história é ou uma comédia ou uma tragédia? O gênero de horror certamente se aproxima mais da Tragédia do que da sua contraparte risonha. O propósito do horror, como da tragédia, é criar, desenvolver e estimular sentimentos inerentemente negativos e finalmente libertá-los, numa explosão emocional que renova e relaxa nossas tensões psicoemocionais. Nós chamamos isso pelo mesmo nome que Aristóteles deu: Catarse. Nós tendemos a ser afetados de forma mais intensa e imediata pela tragédia e pelo drama porque são os elementos negativos que chamam mais a nossa atenção. Das 7 emoções básicas reconhecidas biológicamente, apenas uma é positiva: Felicidade. As demais são reações e mecanismos para lidar com adversidades, ou seja: sentimentos ruins. É importante saber como lidar com o que está errado, e por isso essas emoções existem. E talvez seja para saber lidar, reconhecer e trabalhar essas emoções, vivê-las através e um outro, que os gêneros de Tragédia e Horror existem. Para quem quer pesquisar um pouquinho mais sobre tragédia, este podcast sobre as 6 regras da Tragédia segundo Aristóteles é uma excelente pedida.

Seus Sentidos Não Diferenciam O Real e o Falso O mecanismo cognitivo para discernir ficção e realidade é inerentemente lógico e analítico. Muito diferente dos processos para assimilar estímulos sensoriais, que é concreto e objetivo. O que significa, na prática, que os seus sentidos não sabem a diferença entre realidade e ficção. A parte lógica do seu cérebro sabe, mas os seus olhos e ouvidos não. Por isso o seu coração acelera e você pula da cadeira assistindo um filme de terror, mesmo que você saiba que não é real. Primeiro você tem que absorver o estímulo sensorial para desacreditá-lo, e nesse espaço, seu corpo já está bombeando adrenalina. As implicações disso em uma sessão de RPG são: você, mestre, vai ter um inimigo (a capacidade lógica dos jogadores que sabe que eles estão seguros e salvos) e alguns possíveis aliados (os sentidos deles, que não diferenciam se estão pondo a mão embaixo da mesa em cérebro liquefeito ou em uma amoeba com cheiro peculiar). Então cheiros, tato, estímulos visuais (uma tv que parece escura, quando na verdade você fez um vídeo de tela preta que às vezes dá o flash de um rosto), estímulos auditivos, todos podem ser explorados para gerar a experiência desejada - tanto narrativamente quanto com efeitos práticos. Uma Luz no Fim do Túnel Primeira pergunta de histórias de horror: o que eles ganham? Em muitos casos, nada. O que eles ganham é que os personagens param de perder, impedindo o horror de consumir tudo ao redor deles, suas vidas, seus amigos, seus relacionamentos, sua sanidade. Eles sobrevivem, mas não incólumes. Em outras histórias, existe uma motivação maior: salvar o mundo, salvar a criança possuída, salvar minha filha, etc. Alguma coisa faz com que os jogadores se arrastem adiante pelos cotovelos, pelas unhas, pelos dentes, porque eles eles simplesmente não podem desistir independente do preço. Estas tendem a ser histórias na qual os jogadores podem conseguir o que querem, mas o custo é literalmente tudo que eles puderem pagar. Parte Mais Importante: Não Traumatize Os Seus Amigos Um jogo de RPG de horror, principalmente um jogo levado a sério, pode ser uma experiência extraordinária. E extraordinariamente ruim se, no meio da sua campanha, um dos jogadores começa a chorar, ou alguém levanta e sai correndo porque a sua descrição deu trigger em um trauma da vida dele com o qual ele não consegue lidar. Isso é para dizer que um jogo de horror tem, por conta da temática, riscos maiores do que outros temas. A sua prioridade maior sempre tem que ser a segurança psico-emocional dos seus jogadores. Então, se você vai mestrar um jogo de horror, converse com eles antes sobre quais expectativas eles tem, o que seria ultrapassar o limite, e quais tópicos seriam off-limits. Estabeleça regras que permitam a segurança dos seus jogadores, como as nomeadas no capítulo Safe Hearts da série Monsterhearts, ou as Safety Tools do Golden Lasso. Fora isso,no começo do post e aqui está um podcast com Ana Carolina Saupe, artista, bailaora, aficionada de horror e idólatra de Cthulhu,que conversa comigo sobre o gênero do Horror no RPG e oferece uma outra perspectiva sobre como construir um bom jogo de horror e quais expectativas ter. Para mais idéias, eu também recomendo a série de ensaios colaborativos SCPs, sobre criaturas, objetos e lugares sobrenaturais que precisam ser pesquisados, contidos e estudados. Boas sessões, boas rolagens - e dêem pesadelos e arrepios aos seus jogadores.. _____________________________________________________________________________________________________

Outras leituras:


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